quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Historias da Capoeira 2ª Parte



'Pertencendo à segunda fase da capoeiragem no Rio de Janeiro, essas
cenas tiveram lugar durante a administração policial de Eusébio de Queiroz
e de seus sucessores, desaparecendo totalmente com a guerra do Paraguai,
que não acabou somente com os capoeiras, porém assinalou o termo do
patriotismo brasileiro.”
Em seguida o cronista passa a reportar-se às personalidades
eminentes da época que se notabilizaram também pelos conhecimentos do
jogo da Capoeira.
“É geralmente sabido pela tradição que no Senado, na Câmara dos
Deputados, no Exército, na Marinha, no funcionalismo público, na cena
dramática e mesmo nos claustros, havia capoeiras de fama, cujos nomes
nos são conhecidos.
'Nas garrafadas de março, um dos nossos mais eloqüentes oradores
sacros fez prodígios nesse jogo, livrando-se de seus agressores; recordamonos
de um frade do Carmo que por ocasião de uma procissão de enterro,
debandou a cabeçadas e rasteiras um grupo de indivíduos imprudentes que
o provocaram.
'Pergunte-se por aí qual o ator cuja valentia e destreza como capoeira
eram respeitados, e acreditai que a popularidade precisaria muito para
atingir-lhe o pedestal.
'Quando estudamos no Colégio de Pedro II foi nosso lente de francês
o bacharel Gonçalves, bom professor e melhor capoeira.
'O Dr. D. M., jurisconsulto eminente e deslumbrante glória da tribuna
criminal, cultivou em sua mocidade essa luta nacional, entusiasticamente
levada a excessos pelo povo baixo, que a afogou nas desordens, em
correrias reprováveis, em homicídios horrorosos.
'Pode-se dizer que de 1870 para cá os capoeiras não existem e se um
ou outro, verdadeiramente digno desse nome pela lealdade antiga, pela
confiança própria e pelo conhecimento da arte resta por aí, veio daquele
tempo em que a capoeiragem tinha disciplina e dirigia-se a seus fins.
'Navalhar à traição, deixar-se prender por dois ou três soldados e
espancar a um pobre velho, ser vagabundo e ratoneiro, nunca constituíram
os espantosos feitos das maltas do passado, que brigavam freguesia com
freguesia, disputavam eleições arriscadas, levavam à distância cavalaria e
soldados de permanentes quando intervinham em conflitos de
suscetibilidade comum.
'O capoeira isolado, naqueles tempos, trabalhava, constituía família,
a vadiagem lhe era proibida, não era gatuno, afrontava a força pública e só
se entregava morto ou quase morto.
'Como fizemos ver em princípio, as turmas militantes condensavam
as classe operárias e os escravos, expressão nítida da capoeiragem de rua.”
Em outro momento da sua narrativa, Melo Moraes passa a discorrer
sobre a presença de portugueses e demais cidadãos no meio da Capoeira,
evidenciando que à época esta já poderia ser considerada como plenamente
assimilada enquanto costume popular.
“Não sendo estranhos ao jogo, portugueses havia que se aliavam às
maltas avulsas, distinguindo-se entre eles homens de inaudita coragem e
espantosa agilidade.
'Luzidas companhias de batalhões da guarda nacional, de que tinham
orgulho briosos comandantes, reuniam magnífica rapaziada, de onde eram
tirados praças para diligências perigosas, servindo igualmente para as
campanhas eleitorais.
'A prova de que a capoeiragem entrava nos nossos costumes está em
que não havia menino que não botasse o boné à banda e soubesse gingar,
nem escolas que se não desafiassem para brigar, sendo de data recente as
lutas entre os famosos colégios Sabino, Pardal e Vitorio.”
Ao encerrar a reportagem do jogo da Capoeira no começo do século
XIX, traça Melo Moraes o perfil do famoso capoeira Manduca da Praia.
“O Manduca da Praia era um pardo claro, alto, reforçado, gibento e
quando o vimos usava barba crescida em ponta, grisalha e cor de cobre.
'De chapéu de castor branco ou de palha ao alto da cabeça, de olhos
injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura tinha
alguma coisa que infundia temor e confiança.
'Trajando com decência, nunca dispensava o casaco grosso
comprido, grande corrente de ouro que prendia o relógio, sapatos de bico
revirado, gravata de cor com anel corrediço, trazendo somente como arma
uma bengala fina de cana da Índia.
'O Manduca tinha uma banca de peixe na praça do Mercado, era liso
em seus negócios, ganhava bastante e trabalhava com regalo.
'Constante morador da Cidade Nova, não recebia influências da
capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo
capoeira por sua conta e risco.
'Destro como uma sombra, foi no curro da rua do Lavradio, canto da
do Senado, onde é hoje uma cocheira de andorinhas, que ele iniciou a sua
carreira de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravios sobre os
quais saltava, livrando-se.
'Nas eleições de S. José dava cartas, pintava o diabo com as cédulas.
'Nos esfaqueamentos e sarilhos próprios do momento ninguém lhe
disputava a competência.
'Um dia, na festa da Penha, o Manduca da Praia bateu-se com tanta
vantagem contra um grupo de romeiros armados de pau, que alguns
ficaram estendidos e os mais inutilizados na luta.
'O fato que mais o celebrizou nesta cidade remonta à chegada do
deputado Sant’ana, cavalheiro distintíssimo e invencível jogador de pau,
dotado de uma força muscular prodigiosa.
'Sant’ana, que gostava de brigas e não recuava diante de quem quer
que fosse, tendo notícia do Manduca, procurou-o.
'Encontrando-se os dois, houve o desafio, acontecendo àquele saltar
aos ares ao primeiro canelo do nosso capoeira, depois do que beberam
champanhe ambos e continuaram amigos.”
É interessante o relato de Manoel Querino no Jornal de Notícias, da
cidade de Salvador, na Bahia, do dia 2 de junho de 1914. Em seu
depoimento - que tem por título A Combuca Eleitoral - o jornalista trata das
disputas entre liberais e conservadores e do papel dos capoeiras a soldo dos
partidos, na ocasião em que se realizavam as eleições.
“O capoeira fora sempre figura indispensável nos pleitos eleitorais,
fazendo respeitar a opinião de correligionários, provocando a desordem,
sempre que se fazia necessário; espancando o adversário e contribuindo
desse modo para a formação da Câmara dos Fagundes.”
Prosseguindo em sua narrativa Manoel Querino descreve o dia do
pleito eleitoral: “Chegado que fosse o dia da eleição, estavam as hostes
preparadas para a luta, cada partido arregimentava o seu pessoal, composto
de votantes, turbulentos, capoeiras e aderentes. Todos a postos, começava a
chamada, no campo da matriz da paróquia. Na ocasião aprazada, dava-se
um conflito, era o meio de perturbar a eleição. Chamava-se um cidadão
para votar; o grupo político que dispunha de maior número de desordeiros,
gritava: - É fósforo! - É! - Não é!... E fechava-se o tempo... Gritos,
protestos, doestos, uma vozeria ensurdecedora, e, por fim, recorriam ao
argumento decisivo - o cacete; e o sangue dos partidários ensopava as lages
do templo, sendo alguma vez interdito pela autoridade diocesana.
'Aproveitando a confusão do momento, o votante mais sagaz
introduzia na urna um maço de chapas. Chamava-se esta ação - emprenhar
a urna. De modo que a vitória das urnas estava na razão de quem dispunha
dos maiores elementos de desordem, fossem paisanos ou militares.”
O mesmo sistema que gerava a miséria era o beneficiário da
existência das turbulências no contexto social. Fabricava aquele estado de
coisas. Vale salientar que quando capoeiras faziam uso da violência
indistintamente contra membros de uma sociedade que sobrevivia às custas
da escravidão, não se configuravam suas atitudes em gestos gratuitos. A
história da humanidade nos ensina que em todas as épocas a violência
institucionalizada sempre gerou ainda mais violência.
Outro nome das nossas letras se distinguiu no uso dos recursos da
Capoeira. O escritor Coelho Neto, segundo Francisco Pereira da Silva, era
exímio na arte: “Ágil na pena quanto destro na rasteira, duas vezes
publicamente se valeu do ensino da capoeiragem recebido nos tempos de
rapaz. Josué Montello refere a um destes episódios, precisando a data de 6
de agosto de 1886, quando à noite em meeting de abolicionistas no Teatro
Politeama do Rio de Janeiro, discursava Quintino Bocaiúva. A certa altura,
capoeiristas a soldo dos escravocratas irrompem das galerias e armam
tremendo salseiro. Luzes apagadas, vem Coelho Neto e realiza a incrível
proeza de desarmar o chefe do bando, que outro não era senão Benjamin - o
mais temível capoeira carioca.”
De outra feita, o mesmo romancista Coelho Neto, em episódio
também narrado por Josué Montello e aqui transcrito de Pereira da Silva,
demonstrou seus atributos de destreza e valentia.
“Na Academia Brasileira de Letras, fizera o tribuno maranhense
referência em desfavor de um colega de imortalidade. Dias depois lhe
apareceu um filho do suposto ofendido exigindo satisfação. Gravemente
desentenderam-se e o jovem, que era atleta, não retardou seu golpe de jiujitsu.
Instantaneamente e com agilidade felina, partiu Coelho Neto para o
rabo de arraia levando o insolente a beijar o pó da calçada e a sumir no oco
do mundo...”
Do capoeira da Bahia, no século passado, traçou Manoel Querino um
perfil da sua figura inconfundível, que em muito se assemelhava à do seu
contemporâneo capoeira do Rio de Janeiro: “Era um indivíduo desconfiado
e sempre prevenido. Andando nos passeios, ao aproximar-se de uma
esquina tomava imediatamente a direção do meio da rua; em viagem se
uma pessoa fazia o gesto de cortejar a alguém, o capoeira, de súbito,
saltava longe, com a intenção de desviar uma agressão, embora imaginária.
'Eram conhecidos à primeira vista pela atitude singular do corpo,
pelo andar arrevesado, pelas calças de boca larga, ou pantalona, cobrindo
toda a parte anterior do pé, pela argolinha de ouro na orelha, como insígnia
de força e valentia, e o nunca esquecido chapéu à banda.”
Muitos foram os capoeiras que deixaram seus nomes e feitos
inscritos nas páginas dos cronistas da história, deixando evidente a aptidão
para feitos de coragem e bravura. João Lyra Filho reconta em Introdução à
Sociologia dos Desportos as páginas de Monteiro Lobato acerca do 22 do
Marajó.
“Trata-se de um marinheiro, mestre em desordens, habituado a
revirar de pernas para o ar quiosques portugueses; imperava na Saúde, onde
suas proezas de capoeira exímio andavam de boca em boca. Tantas fez que
o governo o mandou para o Norte, onde foi servir no Alto Amazonas. Ali
aclimado, tornou-se rapaz sereno. Com boa pinta, ferrou namoro com a
mulher de um ship-chandler, tornando-se seu amante. Mas o trio teve pouca
duração; o marido enganado morreu. O marujo casou-se com a viúva,
herdeira de bons pacotes, pediu baixa e seguiu para a Europa. No velho
mundo, permaneceu dois anos, ao cabo dos quais veio morar no Rio de
Janeiro.
'O marinheiro já era outro; transformado em perfeito cavalheiro,
embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas de gala,
as luvas de pelica e a cartola café-com-leite. Ninguém sabia quem ele era,
embora parecesse um fidalgo. Impávido, petroneando de monóculo, olhava
de cima. De hábitos certos, todos os dias passava pelo largo São Francisco,
assim como paca pelo carreiro. O logradouro era ponto de encontro
preferido por alguns rapazes grã-finos, fortemente despeitados ante a
esmagadora elegância do desconhecido. Este passou a ser visto como um
rival, sobretudo no jogo lúdico do namoro com as donzelas. Os rapazes
decidiram quebrar a proa do novo êmulo. Certa vez em que este passava,
mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da roda um capoeira
‘mordedor’, que se gabava de ser um mestre em soltas. ‘Solta’ era uma
cabeçada desferida no adversário, sem encosto da mão.
'Veio a hora da ‘mordida’ e com ela a hora da forra. Os rapazes
selaram o trato: o capoeira embolsaria cinco mil réis, desde que sapecasse
uma solta naquele freguês de monóculo. ‘É pra já’, disse o valentão, já indo
ao encontro do rival. Postou-se perto, na calçada por onde caminhava o
‘22’, desperdiçando passos de lorde e esticado dentro do croisô
confeccionado em Londres Um, dois, três. Quando o antigo marujo o
defrontou, o capoeira avançou e despejou-lhe primorosa cabeçada. Mas o
adversário, surpreendido, quebrou o corpo e mandou a cabeçada do
agressor beijar a parede. Ao mesmo tempo, com um pé bem manobrado,
plantou-o no chão com uma rasteira de placa. O ‘mordedor’ ergueu-se,
tonto e confuso, para desabar, novamente, com outra rasteira de estilo. De
agressor passara a agredido; desnorteado, deu sebo às canelas e foi amansar
o galo da cabeça a cem passos adiante.
'O Petrônio ficou por ali mesmo, onde estava, dando-se ao conserto
do laço da gravata. Mas não perdeu o ímpeto transformado no desprezo
dirigido aos rapazes grã-finos e mofinos da roda elegante: ‘- Só uma besta
desta dá soltas sem negaça. Já o Cincinato Quebra-Louça dizia que soltas
sem negaça só em lampião de esquina; se grampeasse, vá lá. O Trinca-
Espinha, o Estrepolia e o Zé da Gamboa admitem soltas neste caso. Mas,
assim mesmo, só quando o semovente não é firme de letra.’ E, num giro de
bengala entre os dedos, rematou com um suspiro de saudade: ‘- Já gostei
desse divertimento. Hoje, minha posição social não me permite cultivá-lo.
Mas vejo, com tristeza, que a arte está decaindo.’ E lá se foi, imperturbável
e superior, monologando. ‘Soltas sem negaça...Forte besta!’
'Mas os rapazes não se deram por vencidos. Recuperados após o
estupor, uma nova tentativa de desforra cresceu no ânimo deles. A desforra
deveria ser contundente. Já então, a surra deveria ser mediante contrato:
adjudicaram a empresa ao famoso Dente de Ouro, da Saúde, que haveria de
romper o baluarte e quebrar de vez a proa ao estranho figurão. Tudo bem
assentado, foram colocar-se no momento aprazado junto ao carreiro, com o
rompe-e-rasga à frente. ‘É aquele lá’ - apressaram-se em dizer, assim que
ao longe repontou a cartola café-com-leite do sobranceiro lutador. Dente de
Ouro avançou para o desconhecido; ao defrontá-lo, entreparou e abriu-se
num grande riso palerma: ‘Êi 22! Você por aqui?’ E a resposta: ‘- Cala o
bico, moleque, e tome lá para o cigarro. Afasta-te que hoje sou gente; não
ando em más companhias.’ E o 22 do Marajó seguiu caminho honesto,
depois de meter uma pelega de dez na mão do Dente de Ouro. Este,
alisando a nota, voltou ao grupo dos grã-finos. ‘Então?’ - um dos rapazes
interrogou-o, desnorteado com o imprevisto desfecho. - ‘Cês tão besta?
Aquele é o 22 do Marajó, tem corpo fechado para sardinha e pé que nunca
melou saque!’ ”
Em A Alma Encantada das Ruas, João do Rio, pseudônimo de Paulo
Barreto, jornalista, romancista, cronista, teatrólogo e contista, autor de
Dentro da Noite, A mulher e Os Espelhos, e dos livros de reportagens As
Religiões do Rio e Movimento Literário, nascido em 1880 e que veio a
falecer em 1921, na crônica Presepes, aborda um grupo carnavalesco
formado por negros da Bahia, que tem sua sede na praia Formosa, o Rei de
Ouros. Descrevendo suas conversas com Dudú, um dos integrantes do
grupo, quanto à composição do Presepes, indagou:
“- Mas porque, continuo eu curioso, põem vocês junto do rei
Baltazar aquele boneco de cacete?
- Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do rei Baltazar porque
deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não esqueceu a gente. Ora,
não sei se V.S. conhece que Baltazar é pai da raça preta. Os negros de
Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança cungú, em que
se ensinava a brigar. Cungú com o tempo virou mandinga e S. Bento.
- Mas o que tem tudo isso?
- Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem. Jogar capoeira é o
mesmo que jogar mandinga. Rei da capoeiragem tem seu lugar junto de
Baltazar. Capoeiragem tem sua religião.
Abri os olhos pasmados. O negro riu.
- V.S, não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de verdade
só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito da Praia, Chico Bolivar, Marinho da
Silva, Manoel Piquira, Ludgero da Praia, Manoel Tolo, Moisés, Mariano da
Piedade, Cândido Baianhinho e outros... Esses cabras sabiam jogar
mandingas como homens...
- Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as
presepadas.
- Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um
nome. É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V.S. pelas pernas e
viro: - V.S. virou balão e eu entrei de baixo. Se eu cair virei boi. Se eu
lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se usa mais. Mas
posso arrestar-lhe uma tarrafa mestra.
- Tarrafa?
- É uma rasteira com força. Ou esperar o dégas de galho, assim duro,
com os braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco na queda,
ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o baú, pontapé na pança. Ah! V.S. não
imagina que porção de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada,
chama-se banda, quando com força, tarrafa, quando no ar, para bater na
cara do cabra, meia lua...
- Mas é um jogo bonito!, fiz para contentá-lo.
- Vai até o auê, salto mortal, que se inventou na Bahia.
'Para aquela lição intempestiva, já se havia formado um grupo de
temperamentos bélicos. Um rapazola falou:
- E a encruzilhada?
- É verdade, não disseste nada da encruzilhada?
'E a discussão cresceu. Parecia que iam brigar...
'Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater
preguiçosamente meia-noite. As mulatinhas cantavam tristes:
‘Meu rei de Ouros quem te matou?
Foi um pobre caçadô’
'Mas Dudú saltou para o meio da sala. Houve um choque de palmas.
E diante do quarto, onde se confundia o mundo em adoração a Deus, o
negro cantou acompanhado pelo coro:
‘Já deu meia noite
O sol está pendente
Um quilo de carne
Para tanta gente!’
'Oh! Suave ironia dos malandros! Na baiúca havia alegria, parati,
álcool, fantasia, talvez o amor nascido de todas aquelas danças e do
insuportável cheiro do éter floral...
'Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só lhes dera
o dia de amanhã, a queixa se desfazia num quase riso. Um quilo de carne
para tanta gente!
'Talvez nem isso! Saí, deixei o último presepe.
'De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar de sonho
sob a chuva, um ar de milagre, o milagre da crença, sempre eterna e vivaz,
saudando o natal de Deus, através da ingenuidade dos pobres. Como seria
bom dar-lhes de comer, ó Deus Poderoso!
'Como lhes daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse apenas
a esperança de amanhã obter um quilo de carne só para mim!”
João Moniz, poeta nascido em Santo Amaro da Purificação, na
Bahia, deixou nas páginas do jornal A Tarde um relato das suas impressões
acerca do famoso capoeira Besouro, personagem que até os dias de hoje é
cantado nas rodas do jogo. Com palavras de evidente admiração, afirmou o
poeta: “Besouro foi a maior atração de minha infância. Seus combates
simulados com Doze Homens, Ioiô, Nicori e outros capoeiristas seus
amigos, ao som do berimbau e do pandeiro, eram espetáculos magníficos
de força, agilidade e delicadeza, em que os suarentos e leais contendores se
aplicavam, mutuamente, os perigosos preceitos de ataque e defesa,
cuidadosos de se não machucarem, por que não saíssem malavindos do
brinquedo. E Besouro, então, primava por essas atitudes de nobreza, ele
que era respeitado como o primus inter pares, no recôncavo e no costeiro
baianos, da luta, que lhe levaria o nome, em situação privilegiada, ao nosso
folclore.
'Conheci Besouro na pujança dos seus vinte e poucos anos. Era
amável, brincalhão, amigo das crianças e ‘respeitador dos brancos’. De
uma coragem pessoal que parecia loucura, gostava de ‘buli’ com a polícia.
E não raro explodia um turundundum dos diabos em frente à cadeia velha,
sua terra natal. Era Besouro, que, noite velha, havia acordado o
destacamento para um ‘brinquedo’, que se prolongava em correrias e tiros,
e de que ele saía ileso e sempre sorrindo, como entrava.
'Às vezes, no calor da luta, tirava um pouco de ‘tinta’ nos praças,
mas nunca matou ninguém. Tinha tanto horror a palavra assassino quanto
adorava o termo valente, que lhe cabia a rigor.”
A respeito de uma versão - até hoje bastante acreditada - da morte de
Besouro, onde este teria sido “morto traiçoeiramente pela polícia, por ter
abatido oito praças com a capoeira, de uma só vez”, versão esta que foi
publicada em reportagem assinada por Cláudio Tuiuty Tavares, em O
Cruzeiro, afirmou João Moniz em sua crônica:
“Aquele particípio - abatido - empregado pelo repórter, deixa
entender que Besouro matou oito soldados e por isso foi morto. Não, já
deixei dito que Besouro nunca matou ninguém, e posso afirmar, com
absoluta segurança, que não foi morto pela polícia.
'Contam-se duas versões da morte de Besouro. Uma, inverídica,
resultante de perfídia política, e a outra, verdadeira, em que Besouro,
embriagado, fora ferido a punhal, traiçoeiramente, por um rapazelho
subestimado por ele à vista de outros, quando bebiam numa venda. E não
morreu propriamente do golpe, mas, de mau trato, que o deixaram no chão
por mais de um dia, o intestino à mostra, antes que o trouxessem para a
Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro, onde fechou os olhos para a
vida, cercado de amigos, admiradores e curiosos.”
Além do famoso Besouro, muitos capoeiras se notabilizaram, sendo
que alguns se tornaram conhecidos mundialmente, como é o caso do
pescador Samuel Querido de Deus, de Salvador, numa fase em que havia
cessado a repressão ao jogo da Capoeira e sua prática já não era mais
proibida. Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos, traçou o perfil do
Querido de Deus, no ano de 1944, quando o pescador ainda vivia, sob o
título O Capoeira.
“Já começaram os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel
Querido de Deus. Sua cor é indefinida. Mulato, com certeza. Mas mulato
claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena ou com traços de
italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias
deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não é igual a nenhuma cor
conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte com seu barco para os
mares do sul do estado onde é farto o peixe. Quantos anos terá? É
impossível saber nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro
de Samuel atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para
a banca do mercado Modelo. Mas o velhos canoeiros poderão informar que
mais de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois
sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha que parece eternamente
molhada de água do mar?
Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não há
melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição da
Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus. Que venha
Juvenal, jovem de vinte anos, que venha o mais ágil, o mais técnico, que
venha qualquer um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é o rei
da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e
ainda olham espantados quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque
elegância assim nunca se viu... E já sua carapinha tem cabelos brancos...
'Existem muitas histórias a respeito de Samuel Querido de Deus.
Muitas histórias que são contadas no Mercado e no cais. Americanos do
norte já vieram para vê-lo lutar. E pagaram muito caro por uma exibição do
velho lutador.
'Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois cinematografistas
queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel chegara da pescaria, dez dias
no mar e trazia ainda nos olhos um resto de vento sul. Prontificou-se.
Fomos em busca de Juvenal. E, com as máquinas de som e de filmagem,
dirigimo-nos todos para a Feira de Água dos Meninos. A luta começou e
foi soberba. Os cinematografistas rodavam suas máquinas. Quando tudo
terminou, Juvenal estendido na areia, Samuel sorrindo, o mais velho dos
operadores perguntou quanto era. Samuel disse uma soma absurda na sua
língua atrapalhada. Fora quanto os americanos haviam pago para vê-lo
lutar. O escritor explicou então que aqueles eram cinematografistas
brasileiros, gente pobre. Samuel Querido de Deus abriu os dentes num
sorriso compreensivo. Disse que não era nada e convidou todo mundo para
comer sarapatel no botequim em frente.
'Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma
pescaria com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa da Conceição
da Praia, derrotando os capoeiras, pois ele é o maior de todos. Seu nome é
Samuel Querido de Deus.”
Os principais estudiosos da cultura brasileira, no passado recente,
imortalizaram o jogo da Capoeira em páginas magistrais. É este o caso de
Eunice Catunda, que concorreu com suas observações para fixar análise do
jogo e das suas tradições, em artigo intitulado Capoeira no Terreiro de
Mestre Waldemar, publicado em Fundamentos - Revista de Cultura
Moderna, no ano de 1952, em São Paulo.
“Todo artista que não acredita no fato de que só o povo é o eterno
criador, que só dele nos pode vir a força e a verdadeira possibilidade de
expressão artística, deveria assistir a uma capoeira baiana. Ali a força
criadora se evidencia, vigorosa, livre dos preconceitos mesquinhos do
academismo, tendo como lei primordial e soberana a própria vida que se
expressa em gestos, em música, em poesia. Ali se exprime a vida magnífica e bela, em nada
prejudicada pela capacidade limitada dos instrumentos musicais primitivos, aos quais se adapta sem ser
por eles diminuída.
'O senso de realização coletiva, própria essência da arte, se revela no
tríplice aspecto da capoeira, que é uma fusão de três artes: música, poesia e
coreografia.”
Em seguida, Eunice Catunda acrescenta sua opinião quanto ao lugar
ocupado pela Capoeira no contexto das artes, abalizada por sua formação
musical erudita: “A dança da capoeira, na Bahia, é o que jamais deixou de
ser a verdadeira arte: não um divertimento, mas uma necessidade. Aliás, é
esse um dos fatores a que se deve a força mil vezes mais viva da arte
popular quando a comparamos à música erudita: esse caráter funcional,
esse aspecto de necessidade imperiosa que tem toda arte que o povo cultua.
Ao passo que a música erudita soa cada vez mais falsa, se revela sempre
mais um simples gozo de sibaritas, sem função, desnecessária.
'Na Bahia, a arte da capoeira é atividade domingueira, tão normal e
querida quanto o nosso grande esporte nacional, o futebol. E quem a exerce
é, na maioria, o povo trabalhador: operários da construção civil,
carregadores do mercado, gente de profissão definida, que passa a semana
inteira no duro batente, lutando para garantir o pão de cada dia, para si e
para sua família.”
Dando continuidade à apreciação da Capoeira e suas características,
Eunice Catunda faz a colocação do conceito que depreendeu do mestrecapoeira
e seu papel junto aos praticantes, guardando o registro de uma
tradição que continua no correr dos anos: “O ritual, a tradição a que
obedecem os participantes da capoeira, são muito rígidos. O mestre é o
conhecedor da tradição. Daí ser ele, também a autoridade máxima.
Supervisiona o conjunto todo, determinando a música, o andamento,
tirando ou indicando os cantos ou indicando a pessoa que o faça.
'Os concorrentes novatos dançam entre si. Mas quando algum
bailarino se destaca, o mestre dança com ele, apontando-o, por meio dessa
distinção à atenção dos veteranos, novatos e assistentes. Essa autoridade do
Mestre é uma das coisas mais admiráveis e comoventes que tenho visto. O
respeito a ele demonstrado pela coletividade, o carinho com que o cercam,
fariam inveja a muito regente de música erudita. Prova isto que o espírito
de disciplina é mais vivo no povo rude e inculto da nossa terra, quando este
se organiza, que entre as camadas superiores, já mais habituados à
organização conseqüente da própria instrução e do exercício de atividades
culturais e que, por isso mesmo, teriam maior obrigação de compreender a
necessidade e a importância da disciplina na coletividade. Acontece porém
que o mestre nunca abusa de seus direitos. Não se atribui poderes
ditatoriais. Sabe que sua autoridade emana da própria coletividade e
comporta-se como parte integrante desta.”
Ao entrar na descrição do terreiro onde aprecia a Capoeira, as
anotações descrevem as condições de vida da gente anônima e humilde que
resiste com a luta: “O terreiro de mestre Waldemar localiza-se no célebre
bairro proletário da Liberdade. Bairro de grande densidade de população,
sem pretensões, esquecido da Prefeitura que se preocupa em embelezar e
cuidar só daqueles trechos da Cidade do Salvador que se encontram à vista
do turista. Quanto ao bairro da Liberdade, não é para ‘gringo’ ver. Como
todo bairro operário, não tem calçamento, é cheio de valas onde, em tempo
de chuva, as águas parecem envoltas em nuvens de mosquitos; seus
incontáveis casebres mal se têm de pé, e se o fazem é por pura teimosia.
Abundam as vendolas onde se compra desde o jabá até a caninha. É um
bairro repleto de vida e de movimento, corajoso e revoltado.”
A descrição da Capoeira praticada à época deixa claro que a beleza
do jogo se encontra no respeito à forma tradicional, na perícia e habilidade
no manejo do corpo, sem resvalar para o confronto aberto.
“Quando chegamos ao terreiro a capoeira já começara. Dois
dançarinos coleavam rentes ao chão, enquanto dois berimbaus e três
pandeiros acompanhavam com estranhos ritmos e sons aquela dança
magnífica e arrebatadora, de gente combativa e forte. Os dançarinos do
momento eram um carregador do mercado de Água dos Meninos e um
operário da construção civil. O operário estava todo de branco, sapatos
brilhando, camisa alvejando. Era um dos melhores dançarinos. É costume
da fina-flor dos capoeiristas o dançar assim, ‘de ponto branco’ como se
costuma dizer, para demonstrar sua perícia. Chegam ao cúmulo da dançar
de chapéu e os bailarinos hábeis se gabam de sair da dança sem uma só
mancha de terra na roupa, limpos e bem arrumados como se ainda não
houvessem entrado em função.
'A dança da capoeira é a representação simbólica de antigas lutas
autênticas. Na Capoeira de Angola, os dançarinos volteiam quase rentes ao
chão, realizando paradas de braço, em posição horizontal, girando,
escorregando como enguias e escapulindo por sob o corpo do adversário.
Os golpes são constatados por mesuras e pelas exclamações dos assistentes.
Aliás, não fora a precisão daqueles movimentos, muitos dos golpes seriam
mortais. Esse é o caso das célebres cabeçadas assestadas contra o peito e
cujo impulso é sustado só no derradeiríssimo momento, quando a cabeça de
um dos bailarinos já aflorou o corpo do outro. A violência latente nunca se
desencadeia e esse extraordinário domínio de paixões mantêm a assistência
numa incrível tensão de nervos, empolgando a todos numa espécie de
hipnotismo coletivo quase indescritível. Só aqueles que assistiram a uma
demonstração de Capoeira de Angola poderão compreender a monstruosa
força e controle exigidos para que realize cada um daqueles movimentos,
sem que se dê lugar a qualquer agressão, sem que se perca a elegância e a
graça felina de cada gesto, absolutamente medido, calculado por uma
espécie de instinto, já que os elementos atuantes se acham inteiramente
entregues a aquela arte aparentemente tão impulsiva e espontânea.
'Apesar da violência latente, não sobrevem a hostilidade. Há no meio
daquilo tudo imensa fraternidade e júbilo. Verificam-se passes espirituosos
de bailarinos brincalhões e sorridentes, a realizar difíceis e perigosíssimos
passos e golpes. E entre os assistentes estouram sonoras risadas... Jamais
vi, em danças de conjunto, nacionais ou estrangeiras, tão arrebatadora
beleza, aliada a tal rapidez, precisão e força reprimida, dominada por uma
inteira disciplina e lucidez.
'Tivemos ocasião de admirar um menino de sete anos que dançou
com o próprio mestre Waldemar, de quem é aluno, e com aquele operário
exímio de quem já falei. Não se pode imaginar quanto era comovente
acompanhar a frágil figurinha infantil, hábil, compenetrada, a competir
com o homem mais velho, em cujo rosto se iluminava um sorriso afetuoso,
porém nada complacente. Concentrado, o menino aplicava cabeçadas e
rasteiras, escapulindo matreira e agilmente das rasteiras e cabeçadas do
mestre, cônscio de sua dignidade de futuro capoeirista, de futuro artista
popular, imperturbável, sob os olhares e exclamações dos espectadores.
'A voz masculina, pura e profunda, se elevava acima do pulsar do
conjunto instrumental, suave e intensa, muitas vezes modal, para só dar
lugar ao coro, verdadeiro canto recitativo. Depois a voz continuava,
fazendo floreios sobre a mesma base, sem nunca repetir, impossível quase
de anotar com exatidão por meios não mecânicos.
'Os solistas se alternavam, dando à melodia a característica própria
de seu temperamento humano. Umas eram mais vivas, mais espirituosas,
enquanto outras eram sonhadoras, singelas. Mas todos os textos
profundamente poéticos.
'Lembro-me bem de uma voz que se elevou para cantar a beleza dos
saveiros de velas enfunadas, louvando o mar generoso e o vento que os
conduz. Descreveu o vento a acumular nuvens para depois dissolvê-las em
gotinhas de chuva, sobre a branca vela dos saveiros que embalou. Era a
poesia popular que se fazia presente no esplendor típico da arte única que é
a Capoeira de Angola. E a tudo isso o coro continuava a responder pela
boca de todos os assistentes e participantes: ‘Eh! Paraná, eh! Paraná,
camará...’ enquanto os dançarinos voltejando, girando, desviando os corpos
das cabeçadas, rindo alto, aos saltos, elásticos como gatos.”

Espero que gostem na  proxima semana se Deus quizer estarei postando mais axe camaradas.

Professor Golfinho.
Jair Maia.

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